O desmonte da Conab e a política agrícola suicida do governo Bolsonaro
O fechamento de 27 unidades armazenadoras da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) dentro do seu programa dito de modernização e revitalização é o efeito colateral do desmonte de políticas públicas adotadas pelo governo Bolsonaro para a agricultura brasileira.
Mais cedo ou mais tarde esse desmonte prejudicará até mesmo o chamado “agronegócio”, mas por hora está atingindo drasticamente o meio ambiente, a agricultura familiar e o abastecimento dos produtos básicos da população de baixa renda.
A agricultura em diversos países do mundo é encarada como questão de segurança nacional, inclusive com uma política de formação de estoques reguladores. No Brasil não é diferente. A Lei Agrícola 8171/91 – estabelece em seu artigo 3°: “São objetivos da política agrícola: I – na forma como dispõe o art. 174 da Constituição, o Estado exercerá função de planejamento, que será determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, destinado a promover, regular, fiscalizar, controlar, avaliar atividade e suprir necessidades, visando assegurar o incremento da produção e da produtividade agrícolas, a regularidade do abastecimento interno, especialmente alimentar, e a redução das disparidades regionais.”
O governo não tem estoque regulador para enfrentar momentos difíceis como o que estamos vivendo
Conforme estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), para julho de 2020, havia um estoque global de cereais de 895,5 milhões de toneladas, com uma queda de 33,4 milhões de toneladas em relação ao mesmo período de 2019. Isso provocou um aumento de 7% nos preços nos último 12 meses. Portanto, a realidade do nosso país é dramática.
Conforme publicado no site da Conab, em agosto de 2020, a companhia tinha os seguintes irrisórios estoques: 21.592 toneladas de arroz, 28 toneladas de farinha de mandioca, zero de estoque de açúcar, 31 toneladas de café e zero de estoque de feijão. Comparado com a safra de grãos 2019/2020, dados de setembro 2020, a saber: arroz 11,2 milhões de toneladas; feijão 3,3 milhões de toneladas; milho 102,5 milhões de toneladas; soja 124,8 milhões de toneladas. Isto significa, que o governo não tem estoque regulador para enfrentar momentos difíceis como o que estamos vivendo.
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Como se vê, o governo Federal não tem nenhum controle sobre oferta e demanda, deixando as “leis do mercado” regularem os preços, nem sempre a favor dos produtores mas a favor das grandes redes atacadistas e varejistas.
Vejamos o caso do arroz: produção de 11,2 milhões de toneladas, com importação de 1,1 milhões de toneladas, consumo de 10,8 milhões de toneladas, e exportação de 1,5 milhões de toneladas, restando um estoque 537,5 mil toneladas nas mãos do setor privado que dita os preços. O governo abandonou qualquer política de estoque regular de grãos.
Voltando à questão dos armazéns da Conab. Na realidade defendemos que a companhia, ao invés de fechar suas unidades armazenadoras, deveria abrir mais unidades armazenadoras. Para quê? Para funcionarem como unidades armazenadoras e como escritórios de apoio à agricultura familiar, numa parceria com os escritórios das Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ematers), com o apoio das Secretarias de Estados da Agricultura, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), empresas de pesquisas estaduais e nacional, os Institutos Federais de Ensino.
Do ponto de vista de políticas púbicas, estamos retrocedendo 40 anos
A Conab tem expertise para cumprir o papel de apoio à agricultura familiar e operacionalizar uma política de segurança alimentar e nutricional. A agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos que chegam às nossas mesas.
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Do ponto de vista de políticas púbicas, estamos retrocedendo 40 anos. Cabe relembrar que na década de 70/80, a merenda escolar fornecida pela Companhia Nacional de Abastecimento (Cobal) era composta pelos famosos produtos chamados formulados – achocolatados, proteína texturizada de soja, etc. e comprados de forma centralizada em Brasília.
Essa situação veio a ser alterada por decisão política do governo José Sarney (1985 – 1990) que passou a fornecer arroz, feijão, farinha, leite em pó, carne de charque, óleo, açúcar, etc. através dos armazéns da Cobal. Durante ainda o Governo Sarney, criou-se o Programa de Abastecimento Popular – PAP que levou alimentos básicos para as vilas e favelas.
Em 2003, no primeiro mandato do governo Lula, chegamos ao exitoso Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, cujo objetivo é promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Operado pela Conab e também pelos municípios e estados, o PAA tem seu desdobramento no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, criado em 2009.
Só pode existir uma explicação para tais insanidades: Bolsonaro aposta na desagregação e no colapso do Estado e da economia popular
Portanto, saímos de uma situação de fornecimento de produtos ultraprocessados de péssima qualidade (chamados formulados) para a chamada merenda escolar para o fornecimento de alimentos produzidos localmente pelos agricultores familiares para a alimentação escolar, hospitais, creches, asilos, banco de alimentos, formação de estoques de alimentos provenientes da agricultura familiar.
Com esse programa, respeitando os hábitos alimentares locais, os agricultores podem programar sua produção, sua venda é garantida e praticamente não há perda, não há atravessadores, e o dinheiro fica com as famílias no próprio município para movimentar o comércio.
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Os governos Temer e Bolsonaro praticamente acabaram com o PAA da Conab e outras modalidades. Em 2012, os recursos movimentados pela companhia foram de R$ 600 milhões montante que, em 2020, desabou para uma previsão de míseros 15 milhões.
A Confgederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil (Confetraf) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apresentaram uma proposta orçamentária para 2020 de R$ 1 bilhão, e não tiveram resposta do governo Federal.
O governo federal vetou a ajuda emergencial para os agricultores familiares neste momento de pandemia. Só pode existir uma explicação para tais insanidades: Bolsonaro aposta na desagregação e no colapso do Estado e da economia popular.
Conforme o jornal Valor Econômico da terça-feira (8), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento anunciou um bloqueio de R$ 118,5 milhões para o orçamento de 2020 da Embrapa. A medida é avaliada como um “desmonte” capaz de prejudicar pesquisas e afetar o custeio de despesas básicas como pagamento de funcionários, energia e compra de insumos.
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O governo federal aposta no chamado “agronegócio”. O agro é pop! Mas não basta apenas alardear que o agronegócio representa tantos por cento das exportações brasileiras. É necessário perguntar como estamos produzindo esses grandes números da agricultura nacional e quanto realmente está ficando para o país.
Para um país ter soberania nacional ele deve deter o controle de suas tecnologias, de suas finanças, ter um programa de segurança alimentar e um povo instruído com trabalho e dignidade
Ocorre que, com o passar do tempo, nossa agricultura foi se internacionalizando. O que significa isto? As nossas sementes, os nossos fertilizantes, as nossas máquinas, as nossas comercializações estão sendo controladas por empresas transnacionais estrangeiras.
Isso significa que todas as decisões sobre o chamado agronegócio estão sendo tomadas no exterior e com forte presença do setor financeiro. E com forte remessa de lucros para o exterior. 85% dos fertilizantes usados no Brasil são importados. No caso do nitrogenado, tínhamos uma produção muito pequena de ureia, cerca de 800 mil toneladas ano, porém as fábricas, que eram subsidiárias da Petrobras, foram desativadas por Bolsonaro-Guedes.
Nesse sentido, o agronegócio está assentado em fundamentos que não fortalecem um projeto nacional com soberania. Está assentado numa estrutura de liberação de mais venenos na agricultura, na concentração fundiária, na monocultura, no latifúndio, com contaminação das principais fontes de água, com destruição da biodiversidade, com o crescimento do desmatamento e queimadas como temos visto na floresta Amazônica e na região do Pantanal.
Realmente, traz divisas para o país, mas um custo altíssimo será pago pelas futuras gerações, ou agora mesmo, com a degradação do nosso solo e da biodiversidade. Por qual motivo se abrem novas áreas agrícolas com desmatamento? É em decorrência do esgotamento dos solos e da proliferação de pragas, sendo falso o argumento segundo o qual só estamos crescendo com o aumento da produtividade, que se existe, é com base numa agricultura não sustentável.
É muito mais vantajoso ocupar o território nacional com pequenos e médios produtores, através da reforma agrária
Desde as primeiras horas de seu governo, Bolsonaro incentivou a ocupação ilegal de terras na Amazônia, o aumento do desmatamento e das queimadas, e aprovou leis legalizando as invasões de terras por grileiros e mineradoras. Estabeleceu um verdadeiro estado miliciano com assassinatos de agricultores e indígenas.
Numa reunião ministerial, o ministro do Meio Ambiente defendeu “passar a boiada” para flexibilizar as leis de proteção ao meio ambiente. Desqualificou os estudos científicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre as queimadas na Amazônia, resultando no corte de verbas internacionais destinadas à preservação daquele território. O Pantanal está em chamas. É uma catástrofe geral no país. O vice-presidente da República bate cabeça com o ministro do Meio Ambiente.
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Entendemos que qualquer projeto para Brasil deve ser pensado dentro dos marcos da soberania nacional. O que significa um país ter soberania nacional? Para um país ter soberania nacional ele deve deter o controle de suas tecnologias, de suas finanças, ter um programa de segurança alimentar e um povo instruído com trabalho e dignidade.
A Conab, a Embrapa, a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), as Ematers, os Institutos Federais, as Universidades, Escolas Agrícolas podem e devem ser revitalizados com recursos humanos, recursos financeiros e programas voltados para uma agricultura saudável. Todas essas entidades têm acúmulo de anos de prática e ciência para desenvolver o campo brasileiro.
É possível fazer diferente? É possível. Basta a cabeça estar centrada no conceito de soberania nacional. É muito mais vantajoso ocupar o território nacional com pequenos e médios produtores, através da reforma agrária. Feito realizado pela maioria dos países desenvolvidos, com impacto na formação de uma classe de produtores. O agronegócio, com a Lei Kandir, está isento de pagar impostos.
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Ao invés de fechar fábricas de fertilizantes e aumentar as nossas importações de insumos, devemos ampliar a produção nacional de fertilizantes. Com tanto petróleo, chega a ser trágico termos que importar fertilizantes à base de petróleo e mais trágico ainda se pensarmos que podemos produzir fertilizantes com base na biomassa com o desenvolvimento da indústria da alcoolquímica. Estão aí para serem usadas as bio-fábricas de fertilizantes, com Tecnologia nacional e de forma descentralizada.
Precisamos retomar o controle soberano de toda a cadeia da produção, de sementes, adubos, tecnologia, armazenamento e comercialização agrícola nacional
Eleva-se a cada dia mais a consciência da humanidade acerca da necessidade de produzir alimentos saudáveis com base na agroecologia e alimentos orgânicos. O Brasil é hoje um dos principais consumidores de venenos, mas também somos um dos países com maior conhecimento acumulado na produção com base na agroecologia.
Tecnologia nacional, sem necessidade de pagar royalties para transnacionais e com a vantagem de preservar o meio ambiente e, especialmente, a saúde das pessoas. E com impacto reverso no orçamento do sistema público de saúde, leia-se Sistema Único de Saúde (SUS), que é obrigado a gastar bilhões de reais no tratamento de pessoas contaminadas pelos venenos dos alimentos e das águas.
Através da agroindústria podemos agregar valor à nossa produção. Já existem dezenas de experiências exitosas nas pequenas e médias propriedades organizadas em cooperativas. Só que não basta termos dezenas, precisamos ter milhares de agroindústrias, temos terra, água, sol, tecnologia agroecológica, gente precisando de emprego e com capacidade de gerar renda e fortalecer o mercado consumidor interno do país, um dos maiores patrimônios de qualquer nação.
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Também contamos com um centro de desenvolvimento tecnológico como a Embrapa que cumpriu um papel importante no desenvolvimento de tecnologias nacionais. Basta um programa e teremos técnicos novos e os que se aposentaram à disposição para trabalhar. Dinamizar as Ematers para o trabalho de campo para a educação tecnológica e a organização da produção. Os Institutos Federais estão ansiosos por abraçarem um projeto de desenvolvimento para o campo, junto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).
Temos o Banco do Brasil, a Caixa Econômica CEF, o Banco do Nordeste como a base financeira para o suporte a este desenvolvimento agrícola nacional. Paulo Guedes realmente quer ir a fundo no desmonte da nação brasileira, ao propor a venda do Banco do Brasil, entidade com capilaridade que opera financiamentos como o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e Plano Safra.
Precisamos retomar o controle soberano de toda a cadeia da produção, de sementes, adubos, tecnologia, armazenamento e comercialização agrícola nacional.
Ao pensarmos o Brasil agrícola não podemos pensá-lo dissociado de um projeto para o conjunto do país, com a integração do campo com a cidade, com a indústria, com o serviço, com a educação, com a balança de pagamentos, exportação e importação, ou seja, pensá-lo junto com todos os segmentos da sociedade, com produção agrícola e industrial no campo.
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Sabemos o quanto nos custará retomar o processo de re-industrialização neste mundo globalizado. Nesse sentido, tomando os fatores de vantagens comparativas, temos grandes possibilidades no desenvolvimento tecnológico vinculado à biotecnologia e à biodiversidade através das nossas riquezas naturais que urgentemente precisam ser preservadas com base na produção agroecológica e orgânica.
Por fim, é tarefa de toda a população trabalhadora defender com afinco a Conab, por sua expertise, prática e conhecimentos acumulados durante sua existência. Hoje, a companhia conta com uma metodologia consolidada de custo de produção, um setor de levantamento de safra com capacidade de produzir conhecimentos que permitam ao Ministério da Agricultura tomar decisões, quadros técnicos para operarem estoques reguladores; uma capilaridade em todos os estados da federação, com unidades armazenadores em diversas regiões, e uma grande expertise no PAA. Não somos uma nação suicida.
Maria Antunes é engenheira e escreveu esse artigo para a Federação Nacional dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Fenadsef).
Edição: Leandro Melito