Paixão que vira ódio: país vive escalada de violência no futebol
Historicamente visto como algo democrático, capaz de reunir famílias e até possibilitar novas amizades, o futebol guarda um lado sombrio que vai na contramão de qualquer aspecto referente à união ou solidariedade. Movido por um sentimento irracional, grupos de ‘torcedores’ se tornaram protagonistas de cenas de violência dentro e fora dos estádios.
Nas últimas semanas, ataques e agressões no meio futebolístico receberam destaque nas páginas dos principais jornais do país. Somente entre os dias 24 e 26 de fevereiro, por exemplo, aconteceram atentados contra ônibus que levavam as delegações de Bahia, Grêmio e Cascavel. Em dois desses casos, jogadores ficaram feridos e precisaram ser hospitalizados.
Dias antes, uma briga generalizada tomou conta do estádio dos Aflitos, em Pernambuco, quando membros de uma torcida organizada do Náutico teriam ido à porta do vestiário para pressionar os jogadores após a derrota no estadual para o Retrô. Imagens que circularam na internet mostraram esses torcedores trocando socos com os atletas do Timbu.
Além da violência gratuita, atos como estes – presenciados ou transmitidos pela televisão e redes sociais – também contribuem para afastar os torcedores dos estádios. É o caso de Allan Ribeiro, de 29 anos, torcedor do Bahia e que nunca esteve presente em um jogo na Arena Fonte Nova.
“O motivo de não ir aos estádios vem de adolescente, quando eu tinha uns 12 anos. Comecei a ver noticiários em todo o Brasil sobre essas violências. Lembro de uma situação que jogaram um vaso sanitário em um torcedor. Vários estádios já tiveram episódios de violência. Não é nem a questão de ser um jogo decisivo, mas por falta de noção e respeito. Quando você está no estádio, corre risco de sofrer uma agressão gratuita, algo que não lhe cabe”, explicou.
Já com Natan Amoedo, de 23 anos, a situação é um pouco diferente. Torcedor do Vitória, ele conta que, mesmo indo aos jogos, costuma adotar algumas medidas de precaução e segurança. Além disso, em partidas decisivas, como um clássico Ba-Vi, por exemplo, prefere não ir ou assistir à partida sozinho.
“De maneira geral, costumo ficar no lado oposto ao das torcidas organizadas. Sendo torcedor do Vitória, geralmente fico no lado esquerdo do estádio. Além disso, em jogos onde a situação não está muito favorável, costumo sair do estádio alguns minutos antes da partida terminar, para evitar o maior tumulto. Já o Ba-Vi, não vou há um bom tempo. E se for, vou só”, afirmou.
Atualmente morando em Natal, no Rio Grande do Norte, Lucas Gomez, de 23 anos, deixou a capital baiana sem nunca ter ido a uma partida de futebol. Ele diz que sempre teve vontade de assistir a um jogo com sua mãe, torcedora do Vitória, mas o desejo não se cooncretizou por causa da violência.
“Nunca fui (aos estádios). Não tive oportunidade e tinha medo das brigas. Na época, já eram bastante noticiadas e eu tinha consciência dos acontecimentos. Quando morava em Salvador, tinha muita vontade de ir no Barradão com minha mãe, torcedora do Vitória. Mas acabamos nunca indo”, lamenta.
Impacto das mídias
Brigas em estádios e confusões por conta de torcidas organizadas não são novidade no meio futebolístico. Desde o início do século 20, o conceito dos Hooligans era utilizado para descrever gangues de rua da Inglaterra associadas ao futebol, mas o termo passou a ser mais utilizado na década de 1960. No restante da Europa, esses grupos foram classificados como ‘Ultras’.
Em solo brasileiro, a primeira torcida organizada oficialmente foi a Gaviões da Fiel, do Corinthians, fundada em 1º de julho de 1969. Daí em diante, o movimento se espalhou pelo país e, atualmente, quase todos os clubes possuem, pelo menos, uma torcida organizada presente nas arquibancadas durante as partidas.
Com o avanço das tecnologias, aquilo que já era preocupante passou se intensificar ainda mais, uma vez que a comunicação entre as pessoas se tornou mais fácil, e os atos das torcidas organizadas passaram a ser programados e marcados por meio das redes sociais, como esclarece Antônio Netto, professor e especialista em mídias digitais.
“Os recentes ataques a ônibus e toda essa coisa histórica de torcidas que marcam para se agredir antes ou depois dos jogos é uma característica muito forte, que já víamos quando se falava em torcidas organizadas. Agora, com as ferramentas digitais, a organização de eventos bizarros como esse foi digitalizada e facilitou esse processo. Não precisa mais reunir um grupo em uma quadra para falar. Posso fazer isso de uma forma digital, atrelando em um grupo fechado que valida aquele discurso e torna mais simples”, explicou Netto.
Questionado sobre a possibilidade de mecanismos capazes de rastrear as trocas de mensagens, impedindo que os atos saiam das telas dos celulares e ocorram no mundo real, o professor informou que isso ainda não é possível. O motivo seria a ferramenta de segurança utilizada nesses aplicativos, que impede que terceiros leiam aquilo que foi enviado para um destinatário específico. Assim, os atos de ‘burlar’ esse sistema só ocorrem, por exemplo, quando existe alguma investigação policial em curso.
“Sobre Whatsapp e Telegram, ferramentas que tem grupos fechados, infelizmente não existem tecnologias para fazer monitoramento. O Whatsapp tem o que chamamos de tecnologia de duas pontas, dois fatores, onde você tem a segurança de que as mensagens só serão lidas pelo celular que vai receber. Em pouquíssimos casos, quando ocorrem investigações policiais de grupos e tal, existe uma tentativa de se infiltrar nessa tecnologia. Mas são casos específicos. Ainda não temos uma ferramenta que monitore termos para evitar um ataque”, complementou.
Quando a paixão vira violência
Esporte mais amado no Brasil, o futebol é parte do cotidiano das pessoas, e a paixão pelo clube traz impactos à rotina em um aspecto psicossocial. Casos recentes de violência nos estádios, sejam em confrontos entre torcidas rivais ou contra o time do coração – como visto em ataques a ônibus de Bahia e Grêmio -, só reforçam o futebol como catalisador de emoções, mesmo as ruins.
“Temos que entender o papel do esporte em uma sociedade. Quanto maior o peso desse esporte, maiores serão os sentimentos ‘positivos’ e ‘negativos’ proporcionados, evidentemente. Daí, por exemplo, que a derrota do time do coração pode ter um grande impacto para um torcedor, como pode trazer tamanha euforia para o torcedor do time vencedor. Extravasar tais sentimentos são reações humanas naturais, e cada pessoa se expressa de uma maneira diferente”, explica João Aristides, psicólogo e professor universitário.
O professor, que desenvolve pesquisas voltadas a fenômenos culturais na Universidade Federal do Pará, apontou que o problema é quando a emoção “toma o lugar da razão”, principalmente em países em que a violência faz parte da sociedade, como é o caso do Brasil. “Não é que tenhamos um fenômeno violento no futebol como algo atípico. Ele é, na verdade, resultado de práticas de uma sociedade que apresenta comportamentos violentos. Muito fruto da desigualdade social, é importante frisar”.
Em relação ao impacto psicológico do futebol, há uma linha tênue entre o amor e o ódio que ele pode gerar através da frustração. É o que também aponta Ícaro Pereira, psicólogo clínico, especialista em saúde mental.
“O amor por alguém ou por um clube, por mais que a gente olhe de uma maneira positiva, pode gerar outros sentimentos ruins. Se o time perde, gera uma frustração muito grande. Existem estudos dentro da psicologia do esporte que demonstram uma correlação entre a violência e o fanatismo dentro do futebol. É um amor que se torna algo diferente e pode levar a caminhos violentos. Temos também que considerar todo o histórico cultural que incita a rivalidade e, dentro dessas configurações, os próprios ritos têm caratér violento”, falou.
Com o envolvimento de membros de torcidas organizadas em casos de violência, o ‘torcedor comum’ se afasta dos estádios. “Consigo entender que as torcidas organizadas geram essa insegurança para os torcedores comuns que querem ir aos estádios. Seria tão interessante irmos ao estádio torcer para nosso time e entendermos que, depois que o jogo acaba, não precisa haver violência”, ressalta Allan Ribeiro.
Natan Amoêdo concorda com o posicionamento de Allan e diz que já presenciou cenas violentas, apesar de nunca ter sido vítima. “Justamente por sempre deixar o estádio pouco antes da partida terminar, já vi muitas cenas absurdas acontecerem enquanto olhava para trás. Uma das que não esqueço foi há muitos anos, quando um torcedor do Bahia derrubou uma mulher que estava com criança no colo. Isso aconteceu há um bom tempo, mas ficou na mente”, pontuou .
Ao Portal A TARDE, o comandante do Batalhão Especializado em Policiamento de Eventos (Bepe), tenente-coronel Elbert Vinhático, revelou que, durante o policiamento em jogos de futebol, a orientação é dar maior atenção aos membros das torcidas organizadas. “Durante os eventos, temos uma atenção especial com esses torcedores pelo próprio histórico”, contou.
O papel das instituições
Apesar de ser um evento privado, os jogos de futebol reúnem milhares de torcedores. Com isso, a responsabilidade da segurança fica a cargo da Polícia Militar, sobretudo do Bepe, que mantém protocolos específicos na manutenção da ordem nos estádios.
Dois dias antes ou no dia anterior à partida, o Bepe realiza uma reunião de planejamento estratégico. Neste encontro é definida a classificação de risco de um jogo e, daí em diante, a estratégia utilizada. Os jogos são classificados em baixo, médio ou alto risco, o que gera maior impacto no efetivo policial utilizado para o evento.
“Os protocolos tratam, sobretudo, do procedimento no entorno e na parte interna do estádio. Temos muito cuidado no planejamento e sempre fazemos uma reunião preparatória. Essa reunião envolve todos os atores envolvidos em um evento futebolístico. A Polícia Militar é apenas uma das engrenagens do sistema. Tem as federações, os próprios clubes, organizadores das competições, órgãos privados”, afirma o comandante do Batalhão.
A atuação do Bepe em um jogo de futebol é resumida em três momentos: o antes, o durante e o depois das partidas. A primeira parte consiste em policiamento do entorno e supervisão nas revistas antes da entrada dos torcedores ao estádio. Na parte interna, já durante a partida, o foco é em agir rápido para solucionar qualquer problema na arquibancada ou em casos de invasão de campo. Com o fim da partida, o efetivo permanece atento na região para garantir a segurança dos torcedores que deixam o local do evento.
Tanto antes quanto após os jogos, viaturas e motocicletas da Polícia Militar são deslocadas para o acompanhamento aos ônibus das equipes. Essa escolta estava próxima ao veículo do Bahia no dia 24 de fevereiro, quando a delegação foi atacada com artefatos explosivos, que deixaram dois jogadores feridos, entre eles o goleiro Danilo Fernandes, que precisou fazer uma cirurgia em um olho após a região ser atingida por estilhaços.
Na avaliação do comandante do Bepe, a situação foi atípica. “O que aconteceu no ataque ao Bahia foi um ato criminoso, que partiu da própria torcida organizada contra o clube que ela aprecia. Vejo como um caso isolado, por não ser confronto de torcida. Não que esse fato esteja à parte da violência no futebol. Foi um ataque aos atletas envolvendo torcida organizada”, disse.
“Precisamos ter cuidado quando relacionamos esse ataque como violência de torcida. Não foi um confronto de torcidas rivais. Foi um arremesso de um objeto de uma torcida organizada, então não pode generalizar para o torcedor como um todo. Quando a gente avalia isso, o ataque a jogadores do próprio clube é algo que merece uma reflexão”, acrescentou ele.
O comandante do Bepe revelou que nove suspeitos foram identificados como participantes do ataque. Todos são integrantes da torcida organizada Bamor e devem ser denunciados por tentativa de homicídio.