ACM Neto “pardo”: entre o afro-oportunismo e a fraude eleitoral
No verão de 2013, o aclamado diretor de cinema Spike Lee, de Faça a Coisa Certa (1989), Malcolm X (1992) e Infiltrado na Klan (2018), entre tantos outros, passou o carnaval em Salvador. Ativista do movimento negro, Lee dividia sua agenda entre os festejos e a gravação do documentário Go Brasil, Go!, lançado no ano seguinte. Chamaram sua atenção, a ausência de negros nos círculos de poder público da Bahia e a presença majoritária de brancos nos blocos e camarotes do carnaval.
Como registrado por A TARDE em 9 de fevereiro de 2013, a questão racial incomodou o diretor, que abordou o tema em entrevistas feitas para o documentário. Ao vereador Sílvio Humberto (PSB), fundador e presidente de honra do Instituto Steve Biko, Lee perguntou: “Por que Salvador, cidade de população predominantemente negra, nunca elegeu prefeito, governador ou senador negro?” Após a entrevista, Humberto resumiu o sentimento. “Ele achou absurdo o fato da diversidade racial não se refletir também nas estruturas de poder. Isso mostra um racismo estrutural na sociedade.”
Do então prefeito ACM Neto, que iniciava seu primeiro mandato, Lee quis saber sobre políticas inclusivas para a população negra. Ouviu a promessa de que, “a partir do próximo ano”, Salvador teria “um Carnaval mais plural” e que as pautas do movimento negro seriam “tratadas com seriedade”. “O documentário vai mostrar que existem providências sendo adotadas. Esta é uma questão cada vez mais tratada com seriedade”, relatou Neto, logo após a conversa com o cineasta.
Uma década depois, a questão racial é protagonista do debate político e da campanha eleitoral na Bahia, tendo ACM Neto como personagem central. Não pela resolução de problemas, muito menos pela “seriedade” com que ele disse que trataria as pautas do movimento negro. Pelo contrário: o ex-prefeito, hoje candidato a governador, virou alvo de críticas e de chacota nacional ao se autodeclarar “pardo” para a Justiça Eleitoral.
Milhares de memes circularam pelas redes sociais. A pauta chegou a todos os principais meios de comunicação do País. Esta semana, uma apresentadora da GloboNews caiu na risada, ao vivo, ao tocar no assunto e ver a imagem do ex-prefeito “bronzeado”, durante entrevista para a TV Bahia. Foi nessa entrevista que o ex-prefeito proferiu a já icônica frase “então, o erro é do IBGE, não meu” – causando, com isso, nova enxurrada de memes e críticas.
Reparação em risco
O tom de brincadeira com que o tema foi muitas vezes tratado favorece a inclusão da população no debate político, mas não pode camuflar a seriedade da questão e seus desdobramentos. “Quando ACM Neto se autodeclara pardo, cria uma distorção no sistema de políticas públicas criadas para que pessoas pardas e pretas tenham representatividade e igualdade de oportunidades”, afirma o administrador financeiro Alessandro Reis, ex-secretário nacional de políticas raciais da Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir) e ex-diretor da Fundação Palmares.
“À medida que um candidato conhecido burla o sistema dessa forma, passa uma mensagem negativa para outras políticas públicas, como o de cotas nas universidades”, acrescenta o administrador. “Mais do que uma burla que tenta enganar o eleitor, a autodeclaração de ACM Neto traz uma imagem muito deletéria para o movimento negro baiano e deriva para possíveis consequências graves para as políticas públicas de todo o Brasil”.
A socióloga Vilma Reis, coordenadora da Coalizão Negra Por Direitos, atenta que o partido do ex-prefeito de Salvador, antigo DEM e atual União Brasil, sempre se posicionou contra a criação das políticas públicas de reparação racial. “ACM Neto faz parte de um partido que, em dois episódios decisivos para a população negra no Brasil, foi para o Supremo Tribunal Federal (STF) contra nós: no caso das cotas, eles colocaram uma ação direta de inconstitucionalidade em 2003 e foram derrotados em 2012; depois, em 2006, entraram com uma ação contra o decreto 4.887 de 2003, criado pelo presidente Lula com a chancela do movimento negro brasileiro, para demarcação das terras quilombolas, sendo derrotados em 2018”, lembra. “É uma vergonha que agora ele tente se beneficiar de nossa luta, de nosso esforço e se autodeclarar negro da cor ‘parda’. É um absurdo!”
O presidente da União de Negros pela Igualdade na Bahia (Unegro), Eldon Neves, acrescenta que ACM Neto “não produz ou produziu nenhuma política inclusiva para a população negra” em seus mandatos como deputado ou prefeito. “A autodeclaração de ACM Neto é um ataque à longa luta da população negra em busca de reparação histórica”, afirma. “Em seus mandatos como prefeito e deputado, ele nunca discutiu assuntos étnico-raciais dentro da cidade mais negra fora da África e demorou para aprovar a aplicação do Estatuto de Igualdade Racial do município, que ocorreu só no final de seu mandato e suprimiu artigos que não eram consenso na sua base aliada”.
Ação
A seriedade da questão ganhou uma parte maior do debate após o servidor público Jorge da Cruz Vieira, candidato a deputado pelo Psol conhecido como Jorge X, entrar com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) contestando as autodeclarações de ACM Neto e de sua candidata a vice, Ana Coelho – que também havia se autodeclarado “parda”. “O principal ganho que a ação teve foi chamar a opinião pública para um debate que, comumente, é muito acadêmico e centrado no movimento negro”, avalia Jorge X.
“O cerne da ação é apontar o uso indevido de políticas públicas destinadas à população negra. A autodeclaração foi uma conquista para o povo negro, mas o mau uso se torna um perigo para as políticas de reparação. Faço parte das bancas de heteroidentificação de três instituições (Universidade Federal da Bahia, Conselho Federal de Psicologia e Defensoria Pública da União) e isso me trouxe o arcabouço teórico e jurídico para iniciar a ação. Ainda assim, tive de explicar, até para os advogados, as implicações da autodeclaração deles e a ameaça que isso traz para as políticas públicas”.
Citada na ação e constrangida pela enorme repercussão, Ana Coelho corrigiu sua autodeclaração racial para “branca”, há alguns dias. Alegou ter havido um “equívoco” no preenchimento da autodeclaração. “O candidato ACM Neto, porém, permanece se recusando a fazer o mesmo, usando argumentos fracos e culpando a classificação estabelecida pelo IBGE”, lamenta Jorge X.
Fraude
Outro ponto citado pela ação é a possibilidade de Neto, ao se declarar “pardo”, ter cometido fraude eleitoral para ter acesso a mais recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, conhecido como Fundo Eleitoral – o que, em algumas análises, poderia ser passível até de cassação de registro da candidatura. A tese é reforçada pela constatação, demonstrada por reportagem do jornal A TARDE publicada na sexta-feira (23), que o candidato inicialmente se registrou como “branco” na Justiça Eleitoral e alterou a autodeclaração para “pardo” alguns dias depois. Isso ocorre porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, em 2020, que a distribuição da verba do Fundo Eleitoral, deveria ser feita proporcionalmente, pelos partidos, de acordo com o número de candidatos que se autodeclaram pretos e pardos.
Assim, se uma legenda tem 50% dos candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos), metade da verba destinada para o partido deve ser aplicada nesses candidatos. No caso do União Brasil, que tem em ACM Neto um dos principais beneficiários do Fundo Eleitoral no País – é o segundo que mais recebeu recursos do partido, atrás apenas da candidata a presidente pela legenda, Soraya Tronicke –, a divisão do fundo entre os candidatos de diferentes etnias fica “maquiada” com a autodeclaração de Neto como “pardo”. Ele se beneficia financeiramente e seu partido tem mais facilidade em cumprir a proporção exigida pelo TSE.
“Uma vez autodeclarado ‘pardo’, o ex-prefeito pode acessar os recursos eleitorais que seriam direcionados a candidaturas realmente negras (pretas e pardas)”, explica Vilma Reis. “Essa destinação de recursos para candidaturas pretas e pardas foi adotada pelo TSE visando à equidade racial nos pleitos eleitorais, para mitigar a baixa presença, quase insignificante, de pessoas negras nos cargos elegíveis dos parlamentos e do poder executivo”.
“Esta é mais uma face perversa do racismo, um tipo de canalhice que nós, do movimento negro, chamamos de ‘afroconveniência’ e ‘afro-oportunismo’”, complementa Vilma. “Pessoas como ACM Neto, que é herdeiro de uma dinastia do autoritarismo, do colonialismo na Bahia, sequer se envergonham de recorrer ao ‘blackface’ em pleno século 21. E fazem isso quando lhes é conveniente, quando a autodeclaração ‘pardo’ lhes garante alguma vantagem de qualquer ordem, forjando na aparência, na pele, uma trajetória que não lhes pertence.”
O vereador Sílvio Humberto faz coro. “Essa tentativa da afroconveniência é uma das expressões dos privilégios da ‘branquitude’: quando se é alguém que tem os privilégios brancos, você pode ser o que quiser dentro de uma sociedade violentamente racista”, afirma. “ACM Neto é o exemplo típico desse privilégio, um que chegou a um nível de soberba de culpar o IBGE. Se você conhece a política, sabe quem deveriam ser os beneficiários – e certamente ele não é um deles. Então, ele é o exemplo dessa afroconveniência, quando a soberba dele o faz achar que pode até mudar de cor”.